Elson Longo: a química das parcerias

Pesquisador de materiais cerâmicos é um dos pioneiros no país em projetos cooperativos entre universidade e empresas

Especialista em materiais cerâmicos, área que abrange desde a argila para louças e peças artesanais, passando por revestimentos de fornos da indústria siderúrgica, até pisos, azulejos, sensores e semicondutores, Elson Longo tem antes de tudo uma ampla antevisão e capacidade de gestão de projetos de parcerias entre o mundo acadêmico e o da iniciativa privada. Capaz de identificar as necessidades desses dois mundos, ele tem uma trajetória eclética – e muitas vezes pioneira – no país, principalmente em projetos que levam o conhecimento científico e tecnológico para grandes empresas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), White Martins e Faber Castell, entre outras, além de grupos de pequenas e médias indústrias em polos cerâmicos de cidades paulistas como Porto Ferreira, Santa Gertrudes e Pedreira.

A contrapartida, segundo Longo, é o aprendizado em se manter atualizado com a prática industrial, o que reverte para dentro da sala de aula, como também aproximar alunos da graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado das empresas para que conheçam a vivência empresarial. Atualmente, ele é o pesquisador responsável pelo Centro para o Desenvolvimento de Materiais Funcionais, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, e coordenador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia de Materiais em Nanotecnologia, mantido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela FAPESP. Aos 73 anos, é professor emérito da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e docente da pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Elson Longo tem uma trajetória de vida pessoal não muito comum. Entrou em 1966, aos 24 anos, na graduação do curso de química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, atual Instituto de Química (IQ) da Unesp. Antes, paulistano do bairro do Pari, havia trabalhado, ainda aos 12 anos, em uma ourivesaria. Depois, seguindo o pai, militar da cavalaria da antiga Força Pública, morou na cidade de Presidente Prudente, no oeste paulista, onde aos 13 anos começou a atender telefone na Rádio Prudente, logo se tornou repórter e chegou a ser um dos mais requisitados jornalistas da cidade, até se tornar secretário de redação do jornal O Imparcial. Militante político do antigo Partido Socialista Brasileiro (PSB), ele viu sua carreira jornalística e político-partidária interrompida com o golpe militar de 1964, aos 23 anos. Aconselhado pelo pai, voltou a São Paulo, trabalhou vendendo banana no Mercado Municipal de São Paulo e logo conseguiu dar aulas de ciências e matemática no ensino médio em um colégio estadual. Na capital paulista reencontrou também um amigo de Presidente Prudente, José Arana Varela, com quem já tinha, com outros alunos do curso científico (antigo ensino médio), feito um clube de química na mesma cidade. Com Varela, atual professor do IQ-Unesp e diretor-presidente da FAPESP, Longo firmou uma forte parceria acadêmica.

Depois os dois, já professores, Varela em Araraquara e Longo na UFSCar, montaram, junto com o professor Luiz Otávio Bulhões, o Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), em 1988, que tem sede nas duas universidades. É o mesmo laboratório, com trabalhos compartilhados, que os fez partir para os projetos de parceria com empresas, uma prática pouco exercida na época. Hoje são 16 professores no Liec, nas duas universidades, e cerca de 110 alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.

Longo fez mestrado na USP e iniciou o doutorado no Centre de Mécanique Ondulatoire Appliquée, na França, em 1976, e finalizou na USP em 1984, quando tinha 43 anos. Na França, Longo compartilhou o período de estudos com sua esposa, a professora e socióloga Maria Aparecida de Moraes, da UFSCar, que se doutorou em sociologia. O casal tem dois filhos, a engenheira de materiais Valéria Longo, pesquisadora do Instituto de Física da USP em São Carlos, que participa ativamente na elaboração de modelos teóricos no Liec, e Elson Longo, físico de formação que preferiu ser professor de tênis e é consultor da Federação Internacional de Tênis (ITF). Em uma tarde de janeiro, Longo concedeu a entrevista na sede do Liec na UFSCar.


O senhor foi um dos pioneiros em projetos de parcerias entre universidades e empresas. Como vê esse arranjo hoje?
Melhorou 100%. Na época em que começamos, eu e o professor José Arana Varela, na CSN, o pessoal via o pesquisador que estava na universidade e interagia com a indústria como alguém que estava vendendo a universidade. Não era bem-visto quem fazia isso. A ciência tinha que ser pura.

Essas críticas partiam da universidade?
Principalmente de dentro da universidade. Não éramos vistos como pesquisadores. Ao longo dos anos, mudou essa ideia. Hoje, o Estado e fortes financiadores veem de uma forma completamente diferente a interação com a indústria, porque sabem que isso pode gerar riquezas para o país e também porque é muito difícil transformar conhecimento em riqueza. É preciso ter um aprendizado que não existe na universidade, é uma deficiência.

Deficiência de como funciona uma empresa?
De como conversar com o empresário. Porque ele, obviamente, está fazendo um produto e, como estamos no sistema capitalista, vai pegar esse produto, vender e ganhar dinheiro. É linear. O linguajar dele, desde o início, é: “Se eu fizer alguma modificação no meu produto ou se produzir um produto completamente novo, quanto eu vou ganhar com isso?”. O empresário visa lucros, não quer jogar dados com probabilidade. Ele quer que a probabilidade seja alta a favor dele. Não acho que esteja errado. A indústria nacional, a maior parte, pelo menos, tirando as pequenas, conseguiu chegar aonde está com muito trabalho. O mais difícil é a conversa. Para aprender isso, normalmente são necessários anos e é preciso ser sincero. Às vezes, um empresário diz que viu um produto lá fora e quer fazer uma reprodução aqui. Faz um produto X, mas queria fazer um Y. Ele tem que comprar novos equipamentos, fazer investimentos grandes. Dizemos: é possível fazer do jeito que você quer, mas terá que gastar tanto. “Então não dá”, ele responde. Essa sinceridade desde o início gera confiança do empresário no laboratório e ajuda o trabalho com os pesquisadores a dar certo. Antes fazemos uma análise se é viável ou não aquele projeto.

Acabou aquele comentário “o tempo da universidade é diferente do tempo da empresa”.
Esse é um ponto que não avançou muito. Os empresários sempre perguntam: para quando? Tem que deixar claro para eles que temos projetos a curto prazo, que não são inovadores, em que pesquisamos para melhorar o produto. Uma inovação é um processo bem mais profundo. Na maioria das vezes envolve equipamentos novos e a adaptação dos empregados aos novos produtos. É fundamental saber que tipo de trabalho o empresário quer fazer, discutir muito bem e deixar claro que a universidade não é um órgão de doação do conhecimento, tem que pagar por esse crescimento.

A universidade, os alunos e professores ganham o que com essas parcerias?
Ganham muito. É muito simples, porque compensa para um aluno que está fazendo graduação ter contato com a indústria. Normalmente, ele vai ser professor do ensino médio ou vai ficar na universidade no mestrado e doutorado ou trabalhar na indústria. Ele sabe que tem a indústria, mas as pessoas não são aventureiras, elas gostam de ter o pé no chão. Agora, se ele tem o contato com a indústria antes, vê que não é algo tremendamente complicado. Ele viu, fez o projeto, participou, conheceu a indústria e, muitas vezes, a indústria gosta da pessoa pelo jeito, pelo conhecimento e o contrata como funcionário. E, uma coisa que fazemos na universidade, passamos 100% do conhecimento. Não queremos a indústria atrelada à universidade, porque aqui não é um departamento, um apêndice da indústria. É um centro de formação.

Que tipo de conhecimento gerado vocês passam? Patentes também?
Passamos tudo para eles. Essa é uma discussão muito forte, porque a universidade quer receber uma parte e, no final, por causa desses detalhes, não ganhamos mais parceiros na indústria por isso, eles ficam reduzidos. Tem pesquisador que não consegue parceiro, porque no primeiro dia já começa a falar em patente, de toda aquela burocracia.

O empresário não gosta disso.
Não gosta porque é um capitalista que quer lucros. A gente tem que entender. É do ser humano: se puder aproveitar, ele aproveita. Nós também aproveitamos o outro lado para os alunos conhecerem a indústria, estudar os tipos de aperfeiçoamento que podemos colocar em determinado setor, por exemplo. Há uma troca. A universidade ganha porque dá uma formação melhor para o aluno e o professor, que tem uma interação com essa indústria, quando vai dar aula, não vê apenas o livro, mas cria expectativas de como realmente funciona o setor industrial.

Há um tempo falava-se que a patente daria mais prestígio acadêmico.
Eu concordo, eu tenho 38 patentes. O que acontece? Na indústria siderúrgica, por exemplo, nós mudamos muitas vezes o processamento do aço, e isso aí rendeu milhões para a indústria. Com a CSN, por exemplo, fiz 47 ou 48 processos, todos funcionais. Implantamos mais de 30. Implantar significa funcionar. Na prática, nosso laboratório mudou a concepção dos refratários para fabricar aço.

Em que ano?
A primeira vez que estivemos em Volta Redonda foi em 1982. Havia muito acidente de trabalho e problemas técnicos. Fomos o Varela e eu. Nesse trabalho ganhamos a comida e a hospedagem, e pagamos a viagem. Então deu prejuízo. Resolvemos um problema em que técnicos japoneses queriam derrubar os dois queimadores de cerâmica. Eles diziam existir um problema de choque térmico. Fizemos uma análise que mostrou que o ar entrava com uma determinada quantidade de nanopartículas de óxido de ferro, reagia com o silício, que era o refratário, formando silicato de ferro e, por isso, o queimador estava vertendo líquidos devido à fusão desse sal. Estava havendo uma corrosão enorme do equipamento. Aí colocamos um filtro de ar e acabou o problema. Por que uma equipe que veio do Japão não resolveu? Eram técnicos de alto nível, mas desacostumados a pensar como um pesquisador faz. Perguntamos: por que está caindo o líquido? Pegamos a amostra, analisamos e vimos que era silicato de ferro, que o óxido de ferro estava reagindo com a sílica e destruindo o refratário. Se filtrasse, resolveria. O presidente perguntou se eu sabia quanto custava um filtro. Eu disse que não e ele respondeu: US$ 1 milhão. Nós falamos que se ele quisesse resolver o problema que colocasse o filtro. O presidente gostou da nossa segurança e mandou comprar o equipamento.

A parceria se prorrogou por quantos anos?
Até hoje. Atualmente estamos fazendo projetos em meio ambiente, reutilizando cerca de 80% dos rejeitos da usina siderúrgica. Temos uma equipe de pesquisadores que dá consultoria para eles, comandada pelo professor Fernando Vernilli Junior [Escola de Engenharia de Lorena da USP].

Tem um custo para a universidade?
Tem um custo. Fazemos um projeto, a CSN coloca esse projeto numa fundação ligada à universidade e esse dinheiro paga os alunos, as viagens, compramos equipamentos para o laboratório, fazemos a manutenção dos aparelhos. No nosso laboratório, temos vários técnicos e secretárias pagos com esses projetos.

A universidade não teria condição de pagar esses funcionários e esses equipamentos com dinheiro próprio?

A universidade é um sistema complexo. Temos técnicos da universidade e eles ganham um dinheiro da fundação, como incentivo. Eu acho errado que na universidade todo mundo ganhe o mesmo salário. Quem mais trabalha, deveria receber mais; quem menos trabalha, receber menos. Sou contra essa prática de fazer a democracia da incompetência.

Como faz para medir o trabalho?
É simples. Pega-se uma folhinha de papel e pergunta-se: quantos artigos publicou no ano? Quantos alunos formou no mestrado e no doutorado? Com quem interagiu em termos de empresas? Que resultado obteve? Isso tudo cabe em uma folha de papel. A grande maioria dos pesquisadores brasileiros é constituída de pessoas sérias. No entanto, há aqueles pouco produtivos.

Com quais outras empresas o senhor teve parceria?
A CSN foi nossa empresa número 1. Tem a 3M, que no Brasil, juntamente com o professor Edson Leite [UFSCar], ajudamos a construir uma fábrica de varistores [semicondutor cerâmico que funciona como sensor e é capaz de proteger a rede de transmissão de energia contra raios], que quando estava funcionando os dirigentes a levaram para o exterior. A White Martins queria produzir vidros melhores e sem defeito numa atmosfera de oxigênio. Qual foi a saída? Fazer um novo tipo de refratário para viabilizar essa tecnologia, que produz vidros sem defeito. Essa é uma tecnologia que toda fábrica de vidro hoje tem.

A White Martins repassa isso para fábricas de vidro?
É lógico, porque ela vende o oxigênio. Da mesma forma, vimos que as peças de revestimento cerâmico tinham de 12% a 13% de perdas por defeito. O que fizemos? Juntamente com o professor Carlos Paskocimas [Universidade Federal do Rio Grande do Norte], colocamos oxigênio nos fornos, o que resultou em um revestimento muito melhor. Essa tecnologia, que desenvolvemos, está no mundo inteiro. Outra empresa, a Faber Castell, tinha um problema que era o seguinte: os japoneses e coreanos estavam fazendo grafite muito melhor que eles. Tentaram comprar a tecnologia e não conseguiram. Vieram ao nosso laboratório e com o professor Fenelon Pontes [Unesp] nós criamos um sistema melhor para a fabricação do grafite, e hoje eles continuam competitivos e, por sinal, com preços menores, porque nós desenvolvemos uma tecnologia de baixo custo e desempenho melhor. Por isso é importante investir na universidade e tê-la como parceira real.

A pesquisa básica está por trás de todas essas tecnologias?
Aquele exemplo que eu usei da CSN explica. Tinha um prédio de 20 andares que tem oxigênio. Reaçãozinha, óxido de ferro mais óxido de silício formando silicato de ferro. Isso aí o estudante aprende no primeiro ano. É isso que a universidade dá para as pessoas. Ela ensina a pensar, porque o técnico aprende a fazer algo com muita técnica. Um professor não vai fazer igual a um técnico bem formado. Agora, aquele resultado que um pesquisador obtém, com nuances, só ele vai chegar e transformar aquilo em conhecimento. O que é conhecimento? É aquilo que é diferente de tudo que está na praça, na literatura. Existe muita coisa na literatura e ficamos felizes quando colocamos uma linha nova lá, o que não é fácil.

O senhor me falou uma vez que construiu um prédio aqui na UFSCar…
Junto com a CBMM [Companhia Brasileira de Metalurgia e Metais], é esse aqui onde estamos sentados.

Como o senhor conseguiu construir um prédio dentro da universidade?
O pessoal da CBMM veio propor uma parceria para trabalhar com nióbio. O Brasil é um dos maiores produtores do mundo, se não for o maior. E o produto que mais usa esse mineral é o aço nióbio, que é um aço especial. O aço especial custa 20 vezes mais que o comum e tem propriedade mecânica muito boa. Eles vieram conversar e nós fizemos uma troca. Faríamos a pesquisa e eles construiriam um prédio para nós. É o primeiro prédio construído dentro da universidade pela indústria. Foi em 1987. Além de mim, participaram o José Arana Varela e o Luiz Bulhões [aposentado, está na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul].

Vocês tiveram muita oposição na época?
Muita. O pessoal dizia que a indústria estava querendo usar a universidade, a construção do prédio seria a indústria tomando posse do que era do povo. Quem nos paga é o povo e a gente tem que dar um retorno à população brasileira. Geração de riqueza é o melhor retorno. Formação de recursos humanos é fundamental, a parte principal da universidade. Mas a universidade pode fazer mais, pode ter firmas spin off, como as seis que saíram aqui do nosso laboratório e se transformaram em empresas, como a Nanox, de nanotecnologia.

Que tipo de ajuda vocês deram?
Nós contribuímos com a parte de sensores, em pigmentos cerâmicos, utilizando nióbio, que muda de cor, e também colocando nióbio para estabilização da zircônia. Hoje eles não usam mais, mas foi uma tecnologia que nós desenvolvemos aqui no laboratório. Eles ficaram contentes, tanto que nem discutiram, mandaram a planta e nós acertamos a empresa para construir. Começou numa sexta e quando foi segunda, ou terça-feira, quando o engenheiro da universidade veio, já tinha 1 metro de altura o muro. Já estava cercado. É patrimônio da universidade. No começo, eles reclamaram de ter que mandar pessoal para fazer a limpeza. Os quatro primeiros anos não tivemos limpeza porque se concebia este espaço como não sendo da universidade. Às vezes, paga-se o preço por inovar, por ter novas ideias.

Como é ver agora o impulso que vocês deram para o aumento das parcerias?
Hoje, vemos que aquela semente que plantamos frutificou. Existe uma grande maioria de pesquisadores que fala inclusive que não vai interagir com a indústria, mas acha importante a interação, que isso vai estabelecer novas tecnologias, que o Brasil vai ganhar. Mas existem também aqueles que se opõem a essa ideia. Há um consenso nacional de que é importante desenvolver novas tecnologias, e esse é o caminho para sairmos dessa situação de dependência econômica no mundo. A universidade não é um gueto, uma redoma de vidro com seres iluminados. É necessário não só entender as leis da natureza, mas contribuir para a transformação do mundo social.

Quando o senhor começou a trabalhar com a nanotecnologia?

Em cada época o pesquisador tem que surfar em um conhecimento. O que significa? É preciso analisar de forma fria quando surgem os modismos científicos. Isso já fazíamos. Quando aumentamos a vida do cadinho [recipiente cerâmico que suporta altas temperaturas] do alto-forno, com o Sidney Nascimento Silva, da CSN, colocamos partículas de óxido de titânio que reagia com óxido de cálcio e formava titanato de cálcio, que é muito mais refratário que o próprio cadinho, que é de carbono, e isso fez parar a corrosão do equipamento. Com isso, aumentamos a sobrevida dele. Nós colocamos nanopartículas no cadinho. A gente sabia que era nano? Não se usava a palavra nano, mas era nano. Isso foi em 1991.

Não se falava ainda nos nanotubos…
Ainda não tinha nanotubo, mas era nessa época. O nano surgiu porque é possível ver a estrutura da matéria e criar novos materiais. O nano só existe por causa do avanço na microscopia, se não era só imaginação. Hoje é possível ver que é verdade aquilo que imaginamos, porque dá para ver a imagem do material e imaginar o tipo de superfície, se é mais reativa que outra superfície e assim por diante. A nanotecnologia sempre existiu, desde os primórdios, antes dos vitrais da Idade Média. Na Idade Antiga, o pessoal diluía ouro e dava como remédio. Eram partículas nanométricas de ouro como medicamento. O homem já lida com nano há muito tempo, mas não usava o termo. Todo medicamento é menor que nano, é molecular. O princípio ativo da Aspirina é molecular. Quem não gosta de colocar um limãozinho no peixe ou na carne de porco? Aquilo é ácido cítrico. É molecular. Basta mudar um pouco os termos. O pesquisador surfa naquela onda do conhecimento, recebe mais financiamento e, com isso, aprimora o laboratório e as condições para a pesquisa.

Muitos produtos estão surgindo com nanotecnologia…
Eu concordo, mas já existia o nano. O que não existia era pegar esse conhecimento e aplicar, e usar todas as propriedades de forma correta. Isso está sendo feito, porque o pesquisador conhece aquilo que está trabalhando, ele vê. A FAPESP financiou para nós um equipamento que vai permitir pegar uma partícula nano, fatiá-la e analisá-la.

Uma partícula de 10 nanômetros, por exemplo?
De 5, de 8. Fatiar e analisar num microscópio de transmissão. Vamos entender ainda mais a estrutura da matéria. Com esse maior entendimento é possível criar novos materiais. Vamos pesquisar, comprovar, ver se existe defeito na estrutura cristalina e como ela influi na propriedade. É a história do cofre. Eu tenho um de 5 metros altura e o outro de 30 centímetros. Perguntam qual eu quero. O grandão, eu digo. Tinha R$ 1.000 no grandão e R$ 1 milhão no pequenininho. Quando é possível ver, sabemos o que tem. Se o fulano pudesse abrir a porta dos dois cofres, ele ia escolher o pequenininho, que até cabe melhor em outros lugares. O problema maior é a manipulação, mas estão surgindo muitas soluções. Há muita criatividade no processo de manipulação de partículas nano.

Há exemplos aqui?
Sim, claro. Desenvolvemos partículas bactericidas na Nanox, mas não havia uma aplicação em larga escala. Agora colocamos num plástico. É um material que envolve o recipiente. Eu vejo lá em casa. Deixo a salada nesse recipiente plástico e em três dias continua a mesma, não muda nada. Os vegetais e frutas conservam-se mais. É uma tecnologa feita aqui e exportada para os Estados Unidos.

O Liec fez também parcerias com centros de cerâmica nas cidades de Porto Ferreira, Santa Gertrudes e Pedreira. Como foi?
São empresas pequenas em grupos de 15 ou 20. Fizemos, analisamos custos, e eles melhoraram fortemente os produtos deles. Primeiro, chegamos em Porto Ferreira e vimos que todas as empresas tinham forno elétrico. Falamos que precisavam mudar para forno a gás, porque a energia elétrica estava cara e deficiente. Todos que mudaram e seguiram nosso conselho estão lá estabelecidos. Os que não mudaram, porque não tinham dinheiro, pereceram. Primeiro fomos para Porto Ferreira e depois para Pedreira, que têm cerâmica artística. Outra coisa que mostramos para eles: que pode ter uma argila excelente feita pela natureza, e uma argila ruim também feita pela natureza. E tem a imprestável, que tem muito material orgânico, não serve para nada. A ruim tem muita areia, sílica. E a boa tem um balanceamento bom de orgânico e sílica. O que ensinamos para eles? É preciso fazer uma análise simples de quanto de material orgânico existe no produto, quanta sílica. Ensinamos, pelo conhecimento que temos da indústria, a terem um padrão. O fulano chegava lá e tratava a indústria dele como se fosse a própria casa. A indústria precisa de padrão para não ter perdas e obter um produto de qualidade. Não é complicado, mas a grande maioria tinha aprendido com um amigo a fazer a cerâmica e pôr no forno, nem sabiam o porquê das temperaturas, colagem, porque certas vezes a colagem dava certo, certas horas não, detalhes técnicos etc. Não interferimos na criatividade dos artesãos. Não vamos falar dedesign, mas sim do bê-á-bá da cerâmica. Quando o professor Fernando Henrique Cardoso era presidente, a professora Rute Cardoso [fundadora da Comunidade Solidária] incentivou a nossa colaboração com os ceramistas do Vale do Jequitinhonha [Minas Gerais] e de outras regiões do país. Foi uma excelente parceria com resultados relevantes para os artesãos, porque repassamos um pouco de nosso conhecimento em tecnologia cerâmica.

Em Santa Gertrudes, são pisos e azulejos?
Aí era outra história. Quem concebeu criou e trabalhou com o Liec foi o professor José Octavio Armani Paschoal, que trabalhava no Ipen [Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares]. Foi o primeiro homem a sintetizar zircônia, que usamos muito aqui no laboratório, e junto com o Liec criou aquilo que funciona hoje: padronizou a indústria cerâmica, transformando pisos e azulejos em revestimento com qualidade. E hoje Santa Gertrudes é o maior produtor de cerâmica de pisos e azulejos do mundo. Falo do mundo, porque não se sabe quanto a China produz.

Agora quero entrar na sua vida de pesquisador. Por que demorou a entrar na graduação e em fazer o doutorado?
Tenho uma origem muito humilde. Sou paulistano do bairro do Pari. Meu pai era militar. Éramos uma família grande, com seis filhos. Comecei a trabalhar cedo; com 11 anos já contribuía para o orçamento familiar. Uma vez, passei num ourives, o senhor Fortunato, na rua Silva Teles, e ele me chamou para trabalhar lá. Varria, limpava, arrumava, fundia prata e ouro. Meu pai foi então deslocado para Presidente Prudente. Era militar da antiga Força Pública, da cavalaria. Fui junto, tinha 12 anos. Um dia passando em frente à Rádio Prudente, o senhor Hélio Cirino me perguntou se eu era filho do comandante da polícia e se eu não queria atender telefone na rádio. Ele tinha uns meninos lá para isso. Então, eu saía da aula e ia para lá. Fiz um teste, eu sabia escrever, e ele disse que tinha que anotar os recados exatamente como as pessoas que ligavam diziam. Mostrou os jornalistas, os radialistas que estavam lá. Eu já tinha quase 14 anos e ele me pediu para passar pela polícia e dar as notícias da polícia. Aí, um dia, ele me disse que eu seria foca [jornalista em início de carreira]. Naquela época, a primeira coisa que o foca fazia era carregar o gravador. Era um gravador de rolo, pesado. O repórter ia fazer a entrevista e eu ia junto carregando o gravador. Como eu trazia as notícias da polícia direitinho, comecei a fazer o mesmo na prefeitura e na Câmara Municipal. De uma hora para outra, era repórter da rádio, com 15 anos. Depois fui para a Rádio Record de Presidente Prudente e começaram a me pagar o dobro. Passei para a Rádio Piratininga e de lá me chamaram para escrever para o jornal O Imparcial. Ainda é o maior na região. Nesse jornal fui até secretário de redação, a segunda pessoa do jornal.

Foi até que ano?
Até o ano do golpe militar, 1964. Na época, nós montamos um grupo lá e elegemos o vereador mais jovem do estado de São Paulo. Fazíamos política forte. No Partido Socialista Brasileiro, o PSB. No partido, eu era secretário.

O senhor era secretário do partido e do jornal também? Não dava conflito?
Era. Não dava, porque o dono do jornal era da capital e ele nem via o que a gente fazia. E todas as rádios e jornais tinham gente nossa fazendo política. Aí, em 1964, acabou tudo. Todo mundo fugiu.

Não foram os militares que chegaram?
Não, porque eu tinha a vantagem de meu pai ser militar e ele me disse para sumir que iam prender todo mundo. Fui para São Paulo, acho que tinha uns 23 anos. Passei um tempo no Mercado Municipal, vendendo banana. Mas eu tinha feito o científico, passado na Cades [Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário] e podia dar aula. Então fui dar aula de ciências e matemática em uma escola pública no bairro Alto do Mandaqui, na zona norte de São Paulo. Dei aula, continuava estudando e queria ser químico. No dia que eu estava prestando vestibular, conheci o professor Waldemar Saffiotti, que mudou os rumos da minha vida. Ele apareceu na classe e disse que nem todo mundo ia passar na USP, mas que tinha um curso novo de química em Araraquara. Então, eu saí de São Paulo, prestei em Araraquara e fiz química na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, a atual Unesp.

Deixou de fazer política?
Não, fiz tanta política que fui presidente do Clube de Química de Araraquara e fizemos várias reuniões no tempo do regime militar, inclusive no congresso estadual na USP, onde todo mundo ficou com medo porque diziam que iam prender todos os estudantes. Eu era da Polop [Organização Revolucionária Marxista Política Operária, formada por membros do ex-PSB].

O senhor não foi preso?
Não, porque eu não era da diretoria do centro acadêmico, que foi presa em Ibiúna [cidade paulista onde aconteceu o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1968]. Eu também fui presidente do Clube de Química de Prudente, o primeiro laboratório do interior de química que eu, o Varela e outros construímos com o professor Elias Nahum Rahal. Nós construímos um prédio, um laboratório, porque achávamos que só podia aprender química fazendo. Como eu era jornalista, tinha boas relações, fazíamos sessões no cinema para recolher o dinheiro e construir o prédio de dois andares do Clube de Química.

O senhor já gostava de construir prédios desde aquela época…
Era um clube de estudos de química para incentivar outras pessoas. Eu era jornalista e era bom de química no ensino médio. O Varela também participava e a gente se conhecia desde aquela época, em Prudente. Quando eu vim para São Paulo, onde ele também dava aula, reatamos o contato.

Já pensava em dar aula na universidade?
Quando eu terminei o curso de química, vim aqui para São Carlos para dar aula no cursinho do Centro Acadêmico da USP. Peguei todas as cadeiras de química do cursinho. Passei a fazer mestrado com a professora Ivone Mascarenhas, em cristalografia, na parte de proteínas, na USP de São Carlos. Quando eu já estava determinando a estrutura de uma proteína, veio um colega e disse que a Ivone tinha falado que eu estava fazendo um bom trabalho e pediu para ver. Ele tinha um cabelão, o cabelo bateu no experimento e derrubou o cristal. É claro que foi um acidente. Eu tinha demorado seis meses para orientar o material. Aí resolvi mudar o tema da pesquisa. Vou ser teórico. Estudei mecânica quântica, fiz o mestrado com o professor Carlos Frederico Bunge, que é um dos grandes teóricos até hoje, e com isso me relacionei muito bem com o pessoal de teoria e fui para a França, no laboratório Louis de Broglie, para trabalhar com o professor Raimund Daudel, no Centre de Mécanique Ondulatoire Appliquée. Tinha dois grandes laboratórios no mundo de teoria, o de Paris e o de Estocolmo.

Para a França foi com a sua esposa, a professora Maria Aparecida, que também estudou lá?
Eu a conheci nas famosas greves que nós fazíamos em Araraquara. Ela era aluna do curso de ciências sociais, estava dois anos na minha frente. Eu a conheci e tínhamos as mesmas ideias políticas, ela era da sociologia, por sinal excelente cientista social, pesquisadora dos temas rurais. Aí nos entrosamos no tempo de estudantes e estamos juntos desde então. Ela fez doutorado na Sorbonne, Paris 1 .

A parceria acadêmica com o professor Varela quando começou? O Liec é aqui na Unesp e na UFSCar?
O Liec é um só, São Carlos e Araraquara. Olha o nosso exemplo. Fazendo uma análise fria, nosso centro funciona bem. Todo mundo que trabalha aqui não compete com o outro. Se eu posso ajudar qualquer um do centro, eu ajudo e vice-versa. E não é só aqui em São Paulo. Temos 12 estados em que temos pesquisadores em universidades.

Como se formam essas parcerias?
Se você olhar, tem oito ou dez professores que foram nossos alunos e estão nas universidades. Cada um tem seu laboratório, mas são nossos parceiros de pesquisa. Nossa força está aí. Você não consegue fazer uma boa ciência sem ter gente trabalhando junto, questionando e municiando o conhecimento. Temos também uma boa interação no exterior, na Argentina, Colômbia, França, Portugal, Estados Unidos, Canadá e Japão, por exemplo. Na Espanha, temos o nosso maior parceiro, o professor Juan Andres, da Universidade Jaime I. Eles fizeram um levantamento das interações do grupo e a maior é com o Liec. Produzimos juntos 90 artigos. É uma parceria de 25 anos. A internacionalização está no nosso trabalho há muito tempo, e só considero uma interação internacional quando se publica o primeiro artigo.

Como é que o senhor seleciona os alunos para fazer pesquisa?
Dou oportunidades iguais para todos. Quem quiser vem e quem trabalhar bem nós pleiteamos bolsa. A gente tem de tratar com muito cuidado e responsabilidade. Somos um povo pobre e que exige resultados para melhorar a sociedade. Agora, se nós que somos professores não temos responsabilidade, quem vai ter? O órgão financiador está gastando, então o aluno tem que fazer o trabalho bem, ser assíduo. É um ensinamento, uma prática pedagógica orientada para gerir com ética os recursos públicos.

E o Brasil, tem importância na área de cerâmica?
É um dos mais importantes do mundo em cerâmica. Mas na parte de cerâmica de semicondutores estamos engatinhando. Temos aquela cerâmica tradicional e somos muito fortes, mas na parte de semicondutores, que dá mais retorno para a sociedade, porque eles são usados em celulares e computadores, não.

Temos chance de entrar nessa área?
Isso depende de os governos federal e estadual falarem que vão investir e que querem criar condições. Se não tiver essa vontade política, não tem jeito. Falam que o novo ministro, o Aldo Rebelo, não é cientista. Agora, ele escolheu o presidente do CNPq, o professor Hernan Chaimovich, e foi uma escolha excelente. A CSN não estava falindo e não ajudamos a transformá-la numa usina que é modelo no mundo na produção de aço? A questão é: o conhecimento gera riqueza. Os políticos até hoje não sentiram isso em relação ao país. Mas acredito que o Brasil é viável.

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