Um Brasil de origem
País conta com 88 indicações geográficas que norteiam a produção de queijos, vinhos, cafés, frutas e outros produtos em áreas demarcadas
Marcos Pivetta | Edição 309 nov. 2021
m movimento silencioso de valorização de produtos oriundos de áreas específicas do território nacional, quase todos derivados da agropecuária e do manejo de recursos naturais, consolidou-se e ganhou corpo, literalmente, de norte a sul no Brasil nas duas últimas décadas. Até meados de outubro deste ano, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) havia aprovado 88 indicações geográficas (IG) brasileiras, 68 na modalidade indicação de procedência (IP) e 20 na de denominação de origem (DO). Há IG em todas as grandes regiões do país. O Sudeste e o Sul têm, respectivamente, 29 e 27 indicações geográficas reconhecidas. A seguir aparecem o Nordeste (16 IG), o Norte (12) e o Centro-Oeste (4).
Com 14 indicações geográficas reconhecidas, seis referentes à produção de café e duas de queijo, Minas Gerais é o estado com maior número de áreas legalmente delimitadas, ao lado do Rio Grande do Sul. Os gaúchos detêm também 14 IG, das quais sete de vinhos e espumantes. A seguir, surgem o Paraná (10), o Espírito Santo (8), Santa Catarina (6) e o Amazonas (6). Como o Rio de Janeiro, São Paulo apresenta quatro áreas de produção demarcadas reconhecidas pelo INPI, duas delas de café (ver mapa). As IG brasileiras não têm validade legal no exterior. É preciso entrar com um pedido, como se faz com uma patente, para cada uma delas nos mercados de interesse. Outra possibilidade é seu reconhecimento coletivo por meio de acordos comerciais entre países ou blocos econômicos, algo que ainda não ocorreu.
Um quarto das IG brasileiras foi reconhecido de 2020 para cá, conferindo um novo dinamismo a um processo que começou duas décadas atrás. “No momento, estão em análise técnica 27 pedidos para reconhecimento de outras indicações geográficas no país”, diz Pablo Regalado, chefe do setor do INPI que examina esse tipo de demanda. Atualmente, demora em média 20 meses para o instituto dar um primeiro parecer, favorável ou não, ao reconhecimento de uma nova IG. A lei que permitiu o estabelecimento de indicações geográficas brasileiras é de 1996. Seis anos mais tarde, surgiu a primeira IG nacional. Em 2002, foi instituída legalmente a indicação de procedência referente à produção de vinhos e espumantes em uma pequena área delimitada da serra Gaúcha, o Vale dos Vinhedos.
Desde então, o conceito de indicação geográfica foi aplicado para outros produtos, como cafés, queijos, cachaças, mel, frutas, pescados, carnes, além de vinhos. Rochas e pedras ornamentais também podem ser contempladas com indicações geográficas. Três das quatro IG do Rio Janeiro dizem respeito a pedras ornamentais (a outra engloba a cachaça de Paraty). “A legislação brasileira permite até o registro de IG nas áreas de artesanato e de serviços”, destaca a professora de direito econômico e do trabalho Kelly Bruch, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estudiosa do marco legal das IG brasileiras. Recentemente, a França também passou a reconhecer IG para o setor de artesanato. As normativas brasileiras que regem a criação de uma indicação geográfica no país são inspiradas pela legislação europeia, que valoriza produtos agropecuários fabricados em áreas delimitadas, geralmente com ingredientes ou práticas tipicamente locais ou específicas (ver box).
As duas modalidades de IG apresentam muitas semelhanças e algumas diferenças. Em comum, indicações de procedência e denominações de origem regulam as regras de fabricação de um determinado tipo de bem pelos produtores instalados no interior de uma área geográfica demarcada. Esse produto precisa ser feito de acordo com uma série de diretrizes, que podem ser relativamente genéricas ou bastante restritivas. Os produtores que seguem essas normas, discriminadas em um caderno de especificações técnicas, podem usar o nome da IP ou DO em seus produtos. Um conselho regulador interno é responsável por zelar pela obediência das normas da indicação geográfica. Embora uma IP ou uma DO seja concedida pelo INPI para uma pessoa jurídica (geralmente, uma associação de fabricantes, uma cooperativa ou um sindicato), produtores locais não membros dessa entidade de classe podem usar o nome da indicação geográfica em seus produtos desde que cumpram os requisitos legais da IG.
A designação de uma IG faz referência explícita a um determinado lugar, que não precisa obedecer aos limites administrativos de estados e municípios. Ela pode ser uma alusão a um acidente geográfico, como uma serra ou um rio, a uma área popularmente conhecida ou a uma cidade. “O importante é que o nome geográfico tenha associação comprovada com o produto regulado pela IG”, explica a veterinária Débora Gomide Santiago, coordenadora de indicação geográfica de produtos agropecuários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Nas indicações de procedência, uma das modalidades reconhecidas dentro do conceito de indicação geográfica, não é necessário demonstrar que as propriedades do produto decorrem das características geográficas do seu lugar de origem ou do domínio de técnicas de fabricação típicas dessa região. Basta comprovar que uma área apresenta um longo histórico de produção de um bem e adquiriu certa notoriedade ou reputação por fabricar esse produto. “Nesse caso, o fator determinante é indicar, por meio de pesquisa histórica em livros e meios de comunicação, que a área adquiriu notoriedade na elaboração de certo produto”, explica Bruch.
Nas denominações de origem, um caso mais específico no campo das indicações geográficas, as exigências são mais rígidas. “É preciso demonstrar que as propriedades do produto decorrem de fatores naturais, como clima, solo e relevo, e também de técnicas e conhecimentos dominados pelos produtores de uma região”, explica o engenheiro-agrônomo Jorge Tonietto, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, que trabalhou no processo de caracterização geográfica das sete indicações gaúchas de vinhos. Especialista em zoneamento climático para a viticultura, Tonietto é uma referência para trabalhos cujo objetivo é fornecer uma base de informações técnicas para amparar a estruturação de IP e DO.
A primeira indicação geográfica brasileira, o Vale dos Vinhedos, ilustra bem como funciona uma área legalmente demarcada para vinhos e espumantes. Reconhecida como IP em 2002, essa área da serra Gaúcha foi elevada à condição de denominação de origem em 2012. O vale abrange uma extensão de 72 quilômetros quadrados (km2) que se espalham por setores de três municípios. Bento Gonçalves abarca 61% da zona demarcada, Garibaldi detém 34% da área da DO e Monte Belo do Sul 5%. Entre suas normativas, a DO Vale dos Vinhedos prevê que a produção de vinhos tintos deve ser feita, total ou majoritariamente, com a uva Merlot. Nos brancos, a maior parcela do vinho deve vir da uva Chardonnay.
Os espumantes devem ser feitos com pelo menos 60% de uvas Chardonnay e/ou Pinot Noir e serem elaborados pelo chamado método tradicional, similar ao empregado na França para a produção de Champanhe. “Todas as uvas usadas nos vinhos que recebem o selo da DO devem ser plantadas na área delimitada do Vale dos Vinhedos”, esclarece Tonietto. É possível produzir vinhos com outras uvas e outras características nesse pedaço da serra Gaúcha? Claro que sim (muitos produtores fazem isso). Mas esses produtos não podem trazer o nome da DO em seu rótulo. A história do Vale dos Vinhedos é frequentemente apontada como um exemplo de sucesso para as demais indicações geográficas brasileiras (ver box).
O setor de cafés, produto fortemente ligado à história econômica nacional, abriga 13 indicações geográficas, o maior número do país. São oito indicações de procedência e cinco denominações de origem. Aprovada em junho deste ano, a DO Matas de Rondônia é a região demarcada que mais recentemente obteve esse tipo de permissão legal. Ela abrange 15 municípios do estado amazônico, onde se planta o chamado café robusta ou Connilon, da espécie Coffea canephora, mais rústico do que o café arábica (Coffea arabica), de maior prestígio no mercado.
Seis estados cultivam café dentro de áreas legalmente demarcadas e protegidas por uma IG. “Para as regiões de cafeicultura, ser reconhecida como uma IG tem uma função semelhante à obtenção de outros tipos de certificação valorizados pelo mercado, como o selo de fairtrade [comércio justo], com a vantagem de ser em geral um processo mais em conta e, por enquanto, menos sujeito a auditorias externas”, comenta a agrônoma Flávia Bliska, do Centro de Café “Alcides de Carvalho” do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
A pesquisadora estuda a gestão econômica de empresas cafeeiras em São Paulo e em outros estados. Segundo Bliska, mesmo em regiões que receberam indicações geográficas, nem sempre a qualidade do produto é elevada. “Conheço produtores da região do Caparaó, na divisa de Minas com Espírito Santo, que colhem café verde em elevada proporção em relação ao maduro, além de não secarem os grãos de forma adequada, deixando-os algumas vezes mofar”, diz a agrônoma do IAC.
São Paulo tem duas áreas protegidas por IG para a produção de café arábica: as IP Alta Mogiana e Região do Pinhal. A primeira foi reconhecida em 2013 e abarca municípios nos arredores de Franca. A segunda foi criada em 2016 e engloba os municípios paulistas de Espírito Santo do Pinhal, Santo Antônio do Jardim, Aguaí, São João da Boa Vista, Águas da Prata, Estiva Gerbi, Mogi Guaçu e Itapira. “Tivemos a ideia de pedir a criação de uma indicação geográfica para promover nossa região e seus produtores de café”, diz Gabriel Borges, gestor da Alta Mogiana Specialty Coffees (AMSC), associação que reúne 90 produtores e requereu a IG. Atualmente, a entidade estuda pedir uma pequena expansão da área delimitada, para incluir mais alguns municípios mineiros e paulistas. A região produz entre 4 e 5 milhões de sacas (de 60 quilos) de café anualmente, mais da metade delas destinadas à exportação.
“As indicações geográficas são mais um instrumento de proteção contra fraudes e de valorização de nosso produto”, afirma Juliano Tarabal, superintendente da Federação dos Cafeicultores do Cerrado, que obteve uma IP em 2005, a segunda mais antiga do país. Em 2013, a região do Cerrado Mineiro, que se estende por 55 municípios, também foi reconhecida como uma DO. A produção da denominação de origem é de cerca de 6 milhões de sacas anuais de café arábica, das quais 70% são destinadas ao mercado externo.
Os queijos artesanais feitos dentro de indicações geográficas também vêm ganhando prestígio e espaço na mesa do consumidor. Há cinco áreas delimitadas: quatro como IP (Canastra e Serro, em Minas Gerais, Colônia Witmarsum, no Paraná, e Marajó, no Pará) e uma DO (queijo artesanal Serrano, da divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul). Produzido com leite cru bovino, não pasteurizado, em sete municípios da Serra da Canastra, o queijo homônimo é possivelmente o mais conhecido deles. O Canastra tornou-se uma alternativa com maior valor agregado para uma área cujo destino da produção sempre foi o genérico queijo Minas Frescal. “A maturação de, no mínimo, 14 dias torna o queijo Canastra um produto mais complexo e valorizado”, explica Júnio Cesar de Paula, pesquisador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em Juiz de Fora.
O valor de uma peça de queijo Minas Frescal, com cerca de 1 quilo, vendido um ou dois dias depois de sua produção, gira em torno de R$ 15, cerca de quatro vezes menos do que um pedaço equivalente de queijo Canastra, segundo de Paula. “Recebemos a visita de produtores franceses de queijo no início dos anos 2000 e fomos estimulados a estruturar uma indicação geográfica”, conta Higor Freitas, gerente da Associação dos Produtores de Queijo Canastra (Aprocan). Ainda há um longo caminho para o Canastra se firmar de vez na região. Dos cerca de 800 produtores locais de queijo, em geral empreendimentos familiares de pequeno porte, que fabricam em média 20 peças por dia, apenas 70 fazem parte da Aprocan e usam com regularidade o nome queijo Canastra em seu produto.
Em outubro do ano passado, a primeira IG brasileira abrangendo um produto oriundo de terras indígenas protegidas pela Funai foi reconhecida. A denominação de origem Terra Indígena Andirá-Marau foi concedida ao Consórcio de Produtores Sateré-Mawé (CPSM). Os membros da etnia podem usá-la em seu guaraná (Paullinia cupana), produzido na região da bacia do médio Amazonas, na fronteira dos estados do Amazonas com o Pará. O território indígena se estende por 7.890 km2 e engloba partes dos municípios de Aveiro, Itaituba e Juruti, no Pará, e Maués e Barreirinha, no Amazonas. O guaraná, denominado waraná pelos indígenas, é de origem amazônica. “A planta foi domesticada pelos Sateré-Mawé e essa região é considerada o berço genético da espécie”, comenta Débora Gomide Santiago, do Mapa. “Os indígenas têm uma tradição e um saber-fazer intrínsecos à produção do guaraná.”
A DO reconhece os métodos ancestrais dos indígenas na produção e secagem das sementes da planta. Os grãos são desidratados em fornos de barro e passam por um processo de defumação que lhes confere aromas e ajuda no processo de conservação. O cultivo do guaraná se dá, em grande medida, nas chamadas terras pretas de índio, um tipo de solo frequentemente descrito como de origem antrópica, que se formou a partir de restos orgânicos produzidos por seguidos assentamentos humanos. O alto teor de cafeína do guaraná da região, por vezes acima dos 5%, é, em parte, atribuído ao seu cultivo nesse tipo de solo. A polinização dos guaranazais é feita pelas chamadas abelhas canudo, do gênero Scaptotrigona, que não têm ferrão. A produção dos indígenas é basicamente exportada para a Europa.
A DO na terra indígena é a segunda área demarcada para produção de guaraná naquela região amazônica. Desde janeiro de 2019, existe outra indicação geográfica, a IP Guaraná de Maués, cuja zona delimitada é vizinha aos domínios dos Sateré-Mawé, sem, no entanto, haver sobreposição de área. Como indica seu nome, a IP Maués abrange todo o território desse município, com exceção do trecho que faz parte do território indígena. O produto é muito semelhante ao oriundo das terras dos Sateré-Mawé, mas há algumas diferenças. “Cultivamos mudas de guaraná da região fornecidas pela Embrapa enquanto os indígenas preferem trabalhar apenas com as plantas de guaraná presentes em suas terras”, explica Luca Dambros, vice-presidente da Associação dos Produtores de Guaraná da Indicação Geográfica de Maués. “Também evitamos defumar nosso guaraná depois de seco.” A produção de guaraná de Maués atinge cerca de 300 toneladas por ano e engloba por volta de 1.200 produtores. “Mas, no ano passado, apenas 2,5 toneladas receberam o selo da IP Maués”, comenta Dambros. “Neste ano, devemos aprovar 40 toneladas.” A maior vantagem do produto certificado pela IP de Maués é a obtenção de um melhor preço no mercado nacional, que pode chegar a R$ 28 por quilo em vez dos usuais R$ 15 ou R$ 20.
O guaraná não é o único produto amazônico coberto por IG. Três tipos de farinha de mandioca — das regiões de Cruzeiro do Sul, no Acre, de Bragança, no Pará, e do Uarini, no Amazonas — tornaram-se recentemente indicações de procedência. O mesmo ocorreu com o peixe pirarucu manejado dentro das terras do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) com atuação no Amazonas, e com o cultivo do cacau em Tomé-Açu, no Pará, entre outros produtos. Em Linhares, no Espírito Santo, e no sul da Bahia, também há duas indicações geográficas que protegem a produção da matéria-prima do chocolate. O cultivo de mangas e uvas para consumo in natura no vale do Submédio São Francisco e o de melões em Mossoró, no Rio Grande do Norte, são dois outros exemplos de IP de frutos.
Cerâmica e serviços digitais
O território paulista tem duas indicações geográficas de produtos normalmente não cobertos por essa forma de proteção legal. Um deles é o calçado de Franca. O outro é o polo de cerâmica artística em Porto Ferreira, que, desde os anos 2000, contou, em diferentes momentos, com o apoio de pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.
“Em Porto Ferreira, transformamos os fornos elétricos em a gás, antecedendo a crise energética”, conta o químico Elson Longo, professor emérito da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e diretor do CDMF. “Também melhoramos a massa cerâmica e aprimoramos suas propriedades mecânicas. Ainda demos assistência pontual para resolver problemas nos pigmentos.”
Nenhuma indicação geográfica, no entanto, é tão inusitada quanto a do Porto Digital, um polo de tecnologia da informação criado no Recife há pouco mais de duas décadas. Desde 2012, o empreendimento ostenta a condição de única IG brasileira da área de prestação de serviços, um caso raro no universo das IP e DO. “O pessoal do INPI estranhou quando demos entrada com o pedido de uma indicação de procedência, mas eles foram muito receptivos e nos ajudaram em todo o processo”, recorda-se Heraldo Ourem, diretor de Inovação e Competitividade do Porto Digital.
O coração do parque tecnológico, composto por 350 empresas de software que faturaram R$ 2,8 bilhões no ano passado, está no bairro do Recife Antigo, uma ilhota margeada pelos rios Capibaribe e Beberibe e pelo oceano Atlântico, onde nasceu a capital pernambucana. “A história, a geografia e nossa cultura de inovação e responsabilidade social permitiram que conseguíssemos nossa indicação geográfica”, diz Ourem. A iniciativa sui generis dos dirigentes do Porto Digital pode servir de estímulo para que mais setores, seja da área de produtos ou mesmo de serviços, tentem obter uma IG. Para ajudar o consumidor a identificar os produtos de origem protegidos por IP e DO nacionais, foi instituído recentemente o Selo Brasileiro de Indicações Geográficas que poderá ser usado por todas as IG.