Estados Unidos preparam investimento bilionário em sua indústria de semicondutores
Rodrigo de Oliveira Andrade
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sancionou no início de agosto um projeto de lei que irá destinar centenas de bilhões de dólares à pesquisa, ao desenvolvimento e à fabricação doméstica de semicondutores, essenciais para o processamento e armazenamento de dados em diversos componentes eletrônicos usados em smartphones, TV, carros e aparelhos da internet das coisas. O objetivo é revitalizar a indústria local e aliviar a dependência norte-americana das cadeias de suprimento externas.
A Chips & Science Act transitou no Congresso por mais de um ano, mas acabou ganhando amplo apoio de democratas e republicanos. O texto prevê investimentos de mais de US$ 200 bilhões nos próximos cinco anos. Um total de US$ 54,2 bilhões deverá subsidiar a construção, expansão e modernização de parques fabris voltados à produção de alguns dos chips mais avançados do mundo – desse montante, US$ 39 bilhões serão aplicados em empresas que investirem em projetos de pesquisa, desenvolvimento e produção de semicondutores, ou em materiais e equipamentos usados na fabricação desses componentes.
O Departamento de Comércio será o responsável por selecionar as empresas que receberão o dinheiro e monitorar seus investimentos. Para pleitear os recursos, as companhias terão de demonstrar a viabilidade econômica de longo prazo de suas propostas e os benefícios que elas trarão para as regiões em que serão implementadas, seja investimentos em infraestrutura e aprimoramento da força de trabalho ou capacidade de atrair novos fornecedores e clientes. O desafio nesse caso será garantir que os recursos potencializem os investimentos que as fabricantes já planejavam fazer, em vez de apenas substituí-los.
A nova legislação também concederá créditos fiscais às empresas que investirem em equipamentos de produção de semicondutores ou na construção de novas instalações. Conglomerados como Intel, que está construindo duas fábricas no Arizona e outras duas em Ohio, devem ser os maiores beneficiados. Os contemplados não poderão fazer novos investimentos na produção de semicondutores de alta tecnologia em países concorrentes pelos próximos 10 anos. Se descumprirem a norma, terão de devolver os recursos.
“É uma aposta ousada, que reforça iniciativas anteriores no sentido de estimular a fabricação doméstica de semicondutores críticos para a competitividade e segurança nacional dos Estados Unidos”, escreveu o economista e engenheiro Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP em artigo publicado em agosto no jornal Valor Econômico. “Essa ação mostra que políticas industriais ativas – algumas de perfil antigo – vão voltar à ordem do dia.” A pandemia expôs as vulnerabilidades das cadeias de suprimentos desses componentes e a guerra da Ucrânia reforçou esse contexto. “Mas a grande motivação é a rivalidade crescente entre China e Estados Unidos.”
Desde os anos 1990 os Estados Unidos perdem espaço na produção de semicondutores, ao passo que países como China, Coreia do Sul, Japão e Taiwan vêm aumentando sua capacidade por meio da construção de fábricas próprias e incentivos fiscais a empresas estrangeiras que se mudarem para lá. Atualmente, quase 70% da produção mundial de circuitos integrados se concentra nesses quatro países.
A estratégia fez com que muitas companhias norte-americanas investissem nas chamadas fabless, focadas apenas no design dos chips. “Em vez de dominar toda a produção, as fabless se concentram no esquema elétrico e desenho dos circuitos impressos nos chips, terceirizando as outras etapas, como a manufatura do wafer [disco ultrafino de silício que dá origem ao semicondutor] e a montagem final do produto, para empresas asiáticas”, explica o químico Elson Longo, professor emérito da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e diretor do Centro para o Desenvolvimento de Materiais Funcionais, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.
Dados da Associação das Indústrias de Semicondutores dos Estados Unidos (SIA) indicam que a participação daquele país na fabricação de chips caiu de 37% para 12% nas últimas três décadas. Enquanto isso, entre 2019 e 2021, a demanda por semicondutores cresceu 17%. Gargalos desencadeados pela pandemia levaram à escassez e a uma disparada dos preços de circuitos integrados, fazendo com que empresas norte-americanas que dependiam desses componentes para fabricar seus produtos desacelerassem ou suspendessem a produção, prejudicando o crescimento do país e agravando a inflação.
A indústria automotiva foi uma das mais afetadas. Em fevereiro de 2021, a General Motors teve de fechar uma de suas fábricas no Kansas. Já a Mercedes-Benz passou a acumular chips para modelos mais caros e interrompeu a produção daqueles mais baratos. A Porsche alertou os revendedores nos Estados Unidos que os clientes precisariam esperar até três meses para comprar seus carros devido à falta de chips para monitorar a pressão dos pneus. Estima-se que o preço dos automóveis usados tenha subido 37% em 2021, enquanto a inflação norte-americana atingia os maiores patamares dos últimos 40 anos. Montadoras europeias e brasileiras também sofreram. A escassez de semicondutores no Brasil fez com que 14 das 59 montadoras instaladas no país reduzissem seu ritmo de produção, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
A Chips & Science Act desencadeou reações. Em entrevista coletiva em Beijing em agosto, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, criticou a nova lei, categorizando-a como “protecionista” e um exemplo de “coerção econômica”, segundo o jornal China Daily. No mesmo dia, representantes do Conselho da China para a Promoção do Comércio Internacional e da Câmara de Comércio Internacional da China emitiram um comunicado conjunto, divulgado pelo Global Times, acrescentando que a legislação “intensificará a competição geopolítica na indústria de semicondutores e impedirá a recuperação econômica global e o crescimento da inovação tecnológica”. De acordo com o jornal The Oregonian, de Portland, políticos norte-americanos, como o senador democrata Bernie Sanders, também se opuseram à lei, afirmando que o governo não deveria conceder dinheiro público a empresas que já são extremamente lucrativas.
É difícil saber qual será o impacto da nova legislação e se ela conseguirá criar uma base de manufatura competitiva, uma vez que as empresas norte-americanas não deixaram de investir no setor por falta de recursos, mas porque é mais barato transferir a produção para países asiáticos. Para além disso, a nova legislação tem um componente estratégico de longo prazo envolvendo todo o ecossistema de produção que depende de semicondutores. Isso porque o governo dos Estados Unidos também irá ampliar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) por meio de suas agências de fomento à ciência, como a National Science Foundation (NSF), de modo a acelerar o desenvolvimento de tecnologias em inteligência artificial, computação quântica, manufatura avançada, comunicações 6G, energia, ciência de materiais, entre outras. Parte dos recursos será destinada à formação de recursos humanos nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), de modo a aprimorar a força de trabalho do país para que ela possa apoiar a fabricação de novos chips no futuro.
Os Estados Unidos não são os únicos a se movimentar nessa direção. Diversos países estão lançando pacotes de incentivo para abrir mais fábricas de semicondutores. Em fevereiro, a Comissão Europeia afirmou que aportaria € 43 bilhões em sua indústria. Em agosto, a Coreia do Sul anunciou que apresentará nos próximos meses dois projetos de lei para fortalecer ainda mais a competitividade do país na indústria de chips.
O Brasil não está alheio à discussão. Desde 2007, conta com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis), que zerou a alíquota do imposto de importação visando diminuir os custos para aquisição de insumos, máquinas e equipamentos usados na produção de circuitos integrados. O programa se encerraria no início deste ano, mas foi prorrogado por mais cinco anos por meio da Lei nº 14.302. Na prática, no entanto, os efeitos dessa medida são limitados, uma vez que, com a escassez global, o país não tem de quem comprar os insumos necessários para a produção, como os wafers, ainda que pague menos impostos para isso.
“No momento, aguardamos a publicação da Medida Provisória que implementará o Plano Brasil de Semicondutores, contemplando medidas de médio e longo prazo para o desenvolvimento da indústria nacional nesse setor”, diz a engenheira eletrônica Rosana Casais, diretora institucional da Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi). O assunto é discutido desde 2021 no âmbito da iniciativa Made in Brasil, coordenada pelo Ministério da Economia. O plano pretende aumentar a participação do país no mercado mundial de semicondutores – avaliado em US$ 470 bilhões – de 2% para 4% nas próximas duas décadas via desoneração da cadeia produtiva, apoio à P&D, estímulo à demanda interna, regime aduaneiro especial e capacitação de recursos humanos.
A indústria brasileira hoje se concentra principalmente nas etapas finais de produção de semicondutores, isto é, no afinamento, corte, encapsulamento e teste desses componentes a partir da manipulação do wafer, importado sobretudo da Coreia do Sul e de Taiwan. Para Longo, da UFSCar, “seria importante o Brasil dominar os outros elos do ecossistema de produção para buscar adensamento tecnológico e diminuir sua dependência externa”.
O país chegou a investir em empresas para preencher essa lacuna. Em 2008, criou o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), empreendimento público com sede em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Com capacidade para produzir cerca de 20 milhões de chips por mês, o Ceitec tinha em seu portfólio até 2018 sete circuitos integrados de baixa complexidade, usados para identificação de animais, pessoas e veículos, gestão de inventário, controle de ativos, entre outros (ver Pesquisa FAPESP nº 266).
Em 2020, porém, o governo decidiu liquidar a empresa e vender os ativos para o setor privado. Segundo o Ministério da Economia, em seu melhor exercício anual, o empreendimento gerou receita de R$ 7,8 milhões, mas sustentava uma despesa operacional média de R$ 80 milhões por ano desde sua criação. A diferença era coberta pelo Tesouro Nacional. A organização social escolhida para assumir a estatal era a Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex), mas o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu a liquidação. A expectativa era de que o processo voltasse a ser apreciado pelo TCU em agosto deste ano, mas o tribunal adiou a votação. O pedido de vista do ministro Vital do Rêgo estabelece um prazo de 30 dias para recolocar a matéria na pauta.
Segundo Rosana Casais, da Abisemi, a criação de uma “capacidade mínima viável” de produção de wafers seria importante para o Brasil do ponto de vista científico, econômico e geopolítico. “O país possui posição de destaque na região, considerando o arcabouço de suas políticas setoriais e as tecnologias e capacidades já desenvolvidas, aliadas a um expressivo e crescente mercado consumidor”, ela diz. “Os demais países da América Latina, por exemplo, não possuem uma indústria desenvolvida e sequer produção local, resultando em grandes oportunidades para o país.”
Essa, no entanto, não será tarefa fácil. A fabricação de chips modernos envolve mais de mil etapas e requer propriedade intelectual, ferramentas e insumos advindos de fornecedores do mundo todo. “Serão anos de investimento para que o Brasil consiga reverter sua dependência externa e, mesmo assim, não será autossuficiente na produção de circuitos integrados, dada a complexa cadeia de valor envolvida em sua produção”, diz Casais.