Vidro bioativo poderá tratar câncer ósseo
Suzel Tunes – Revista Pesquisa FAPESP
A engenheira de materiais paraibana Geovana Lira Santana conheceu as propriedades do F18, um vidro bioativo capaz de estimular a regeneração óssea, ao chegar à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) para fazer mestrado. Viu no novo material a possibilidade de realizar o desejo antigo de virar cientista e fazer pesquisas sobre câncer. A partir do F18, uma criação do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV), do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa) da UFSCar, Santana trabalhou no desenvolvimento de um compósito com partículas magnéticas para tratar câncer ósseo.
Com a colaboração do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros (CeRTEV) e do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), dois Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, Santana desenvolveu um novo material para ser aplicado como enxerto no osso afetado por câncer. À matriz vítrea formada pelo vidro bioativo (ou biovidro) F18, patenteado pela UFSCar em 2015, ela incorporou manganitas de lantânio dopadas, ou seja, enriquecidas com estrôncio, um material que aquece quando exposto a um campo magnético alternado externo.
O resultado foi um compósito – material formado por dois ou mais componentes com propriedades complementares ou superiores às dos itens que lhe deram origem – com dupla função. A primeira é o combate às células tumorais pelo aquecimento controlado das partículas magnéticas; a segunda é a regeneração do tecido ósseo, em razão da capacidade de osteoindução do biovidro. “O vidro bioativo libera íons que alteram o pH do meio, estimulando a proliferação de células ósseas. Ele não apenas cria um ambiente favorável à regeneração do osso, como fazem os substitutos ósseos disponíveis no mercado, mas também promove a formação de tecido”, resume a pesquisadora, que hoje faz doutorado no mesmo departamento. Além disso, o biovidro F18 tem forte ação bactericida, que dificulta infecções no pós-cirúrgico.
Iniciado em 2018, o projeto teve a orientação do engenheiro de materiais Edgar Dutra Zanotto, coordenador do LaMaV e do CeRTEV, e colaboração do professor do DEMa Murilo Crovace. Os resultados preliminares, publicados no periódico científico Materials em 2022, são promissores.
Outra característica relevante do novo material é que ele pode ser aquecido até no máximo 45 graus Celsius (oC). Dessa forma, evita-se o superaquecimento do local e danos a células sadias vizinhas ao tumor. Em testes laboratoriais, as partículas magnéticas do compósito chegaram a 40 oC em poucos minutos ao serem submetidas a um campo magnético externo.
“É uma temperatura bem próxima à ideal para o tratamento do tumor, por volta de 43 °C”, conta Santana. “A formação de uma camada de hidroxicarbonato apatita, naturalmente presente no osso humano, permite a ligação do compósito com o tecido ósseo”, explica a pesquisadora. Além de buscar os níveis ideais de aquecimento, as próximas etapas do projeto compreendem a realização de testes in vitro e estudos clínicos, ainda sem data prevista. Um pedido de patente do compósito foi depositado em 2021.
O médico radiologista Marcos Roberto de Menezes, coordenador da área de radiologia e intervenção guiada por imagem do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), avalia que, uma vez validado por estudos clínicos, o novo material poderá trazer boas perspectivas ao tratamento oncológico. Menezes é especialista no tratamento de câncer por termoablação, técnica que consiste na inserção de agulhas guiadas por imagem para destruição da célula tumoral por aumento de temperatura ou congelamento.
Segundo o radiologista, o uso da temperatura como recurso terapêutico na oncologia pode ser uma alternativa menos invasiva à cirurgia em casos específicos, como no tratamento de metástases. “A terapêutica por hipertermia [aumento acentuado da temperatura do corpo] para a destruição da célula tumoral já está bem estabelecida. A grande vantagem desse novo material seria a possibilidade de destruir o tumor mantendo a estrutura e a função do osso”, avalia Menezes. Ele explica que o tratamento por hipertermia destrói o tumor, mas dependendo da extensão e gravidade da lesão pode haver um enfraquecimento do osso afetado, gerando perda de função e dor. A capacidade de osteoindução do vidro bioativo poderia solucionar esse problema.
Mesmo faltando várias etapas para chegar ao mercado, o vidro bioativo com partículas magnéticas da UFSCar já tem uma empresa interessada em promover sua comercialização: a startup Vetra, fundada em 2014 por ex-alunos do CeRTEV e incubada no Supera, o parque de inovações tecnológicas de Ribeirão Preto.
O biovidro utilizado como matriz do compósito desenvolvido por Santana nasceu do projeto de mestrado da dentista Marina Trevelin, sócia-fundadora da Vetra, realizado no LaMaV-DEMa-UFSCar entre 2009 e 2011. No doutorado, a pesquisadora expandiu o projeto avançando para os ensaios pré-clínicos e explorando diferentes aplicações para a tecnologia, como regeneração de feridas da pele e de nervos.
Trevelin recebeu bolsa da FAPESP para a realização do doutorado em ciência e engenharia de materiais e a Vetra teve apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da Fundação, para a produção industrial do F18. A startup tem a patente do material, licenciada pela UFSCar em 2016 (ver Pesquisa FAPESP no 241), e hoje o fornece para empresas especializadas em produtos médicos e odontológicos.
O projeto de Santana é herdeiro de uma história ainda mais antiga, que remonta a 1977, quando Zanotto criou o LaMaV na UFSCar. Naquela época, o vidro bioativo ainda era novidade no Brasil. Tinha sido inventado havia menos de 10 anos, em 1969, pelo engenheiro de materiais norte-americano Larry Hench, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, a partir de uma composição de sódio, cálcio, silício e fósforo.
O novo material chamou a atenção pela capacidade de reagir com fluidos corpóreos formando uma camada de hidroxicarbonato- apatita, o que lhe permitia ligar-se quimicamente ao tecido ósseo e promover sua regeneração. Foi patenteado como Bioglass 45S5, nome que se popularizaria para materiais similares com diferentes composições.
Em pouco tempo, o biovidro ganhou lugar de destaque no mercado de biomateriais. “Na Europa e nos Estados Unidos, ele vem sendo utilizado para produzir enxertos ósseos, membranas para a regeneração de úlceras da pele e, em forma de pó, produtos odontológicos para a reparação de defeitos no esmalte e tratamento da hipersensibilidade dentinária”, destaca Zanotto.
O material inventado por Hench, entretanto, apresentou limitações, devido a sua baixa resistência mecânica. Essa característica impede o uso como implante em locais submetidos a grandes cargas e limita a capacidade de moldá-lo em diferentes formatos. Um dia, numa conversa informal à mesa de um bar, Zanotto e Hench especulavam sobre essas limitações quando surgiu a ideia de um novo projeto. “Imaginamos que seria possível cristalizar o biovidro para conferir a ele maior resistência”, recorda-se o brasileiro. Esse projeto acabou sendo o tema do doutorado do engenheiro de materiais Oscar Peitl, hoje professor do DEMa-UFSCar. Dessa pesquisa, concluída em 1995, nasceu o biosilicato, patenteado em 2003.
Zanotto explica que o biosilicato é uma vitrocerâmica (ver Pesquisa FAPESP no 191). No processo de cristalização, realizado a partir da inserção de aditivos e exposição a altas temperaturas, o material, que inicialmente tem uma estrutura desordenada, passa a ter uma ordenação geométrica regular. A cristalinidade confere à vitrocerâmica propriedades mecânicas superiores às dos vidros bioativos, mas geralmente reduz o índice de bioatividade. O desafio da equipe da UFSCar foi, então, projetar uma formulação que conferisse uma bioatividade similar à do biovidro mantendo a alta resistência mecânica. O resultado agradou os pesquisadores.
“Nos últimos anos realizamos três estudos clínicos distintos com o biosilicato, todos com sucesso”, informa o coordenador do LaMaV. De acordo com Zanotto, além de eficiente no tratamento de hipersensibilidade dentinária, na forma de pó, o material permitiu a produção de implantes de ossículos do ouvido médio e de um implante oftálmico. Essa prótese ocular de vidro apresenta aspecto e movimentação muito semelhantes ao olho natural.
Anos depois, na criação do biovidro F18, os pesquisadores queriam resultado oposto ao do biosilicato: que ele não cristalizasse quando submetido a altas temperaturas, permitindo maior controle do material na produção de fibras, tecidos vítreos e peças 3D complexas. Trevelin conta que foram feitas 17 tentativas até a obtenção da fórmula ideal, a F18. “Chegamos a uma composição estável e altamente bioativa, além de bactericida. Desde o início dos testes pré-clínicos, em 2011, o F18 tem se mostrado promissor na regeneração tecidual”, diz Trevelin.
Valendo-se das propriedades bactericidas do F18, Trevelin, da Vetra, pretende empregá-lo como enxerto ósseo em pacientes acometidos por osteomielite, uma infecção óssea causada por microrganismos patogênicos. Ela já iniciou pesquisas nessa direção, com financiamento do Pipe. A realização de testes clínicos depende agora de investimentos na infraestrutura da startup, que a pesquisadora espera fazer com auxílio do Pipe Invest, modalidade de apoio a startups e pequenas e médias empresas.
Na Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (SP), um grupo de pesquisa liderado pela engenheira de materiais Juliana Marchi também desenvolve um compósito vítreo para o combate ao câncer ósseo usando hipertermia. Além de nanopartículas magnéticas para o aquecimento da região afetada, o material compósito tem mais dois agentes terapêuticos: o elemento químico hólmio (Ho) para aplicação de braquiterapia, uma espécie de radioterapia interna para a destruição do tumor, e ácido zoledrônico, fármaco usado para o tratamento de metástases ósseas.
Segundo Marchi, essa abordagem multidisciplinar permitiu o desenvolvimento de uma nova metodologia, descrita em artigo publicado na revista Biomaterials Advances, em 2022, que resultou em um vidro com alta bioatividade e magnetização. Um diferencial do material é a possibilidade de dosar a taxa de entrega dos agentes terapêuticos associados ao compósito. “Podemos modular a dose da braquiterapia no momento da implantação dos vidros bioativos contendo a propriedade radioativa de hólmio incorporado”, explica. O projeto, apoiado pela FAPESP, está na fase de testes in vitro.