Por mais de 65 anos, o monoboreto de nióbio (NbB) foi considerado um exemplo clássico de material supercondutor. Tal suposição, registrada nos manuais de física da matéria condensada e em artigos especializados, foi agora contestada em estudo feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da San Diego State University (EUA).
Em artigo publicado na Physical Review Materials, os pesquisadores demonstraram que a supercondutividade previamente detectada não se devia ao monoboreto de nióbio. As propriedades supercondutoras foram associadas a filamentos de nióbio quase puro que margeiam os grãos do NbB nas amostras estudadas.
O estudo foi coordenado por Renato de Figueiredo Jardim, professor titular do Instituto de Física da USP e diretor da Escola de Engenharia de Lorena, e conduzido no âmbito do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP.
“Sabemos que o elemento nióbio (Nb), sozinho, apresenta supercondutividade quando resfriado a temperaturas muito baixas, da ordem de 9,2 Kelvin (K). Agora, descobrimos que isso não ocorre com o monoboreto de nióbio (NbB) propriamente dito. Ocorre que nas amostras de NbB existe uma grande fração volumétrica de NbB, mas também uma pequena quantidade de Nb quase puro. São duas fases cristalinas distintas que coexistem nos materiais estudados. É essa fase minoritária, composta por aproximadamente 98% de nióbio e 2% de boro, que se comporta como supercondutora”, disse Jardim à Agência FAPESP.
Nas imagens de microscopia eletrônica reproduzidas no artigo, os filamentos de coloração branca correspondem à fase minoritária, com cerca de 98% de nióbio e 2% de boro. A notação adotada para caracterizar tal composição é Nb0.98B0.02. Já as regiões acinzentadas, em maior fração volumétrica, correspondem ao monoboreto de nióbio.
Os autores observaram que, mesmo ocorrendo em uma pequena fração volumétrica, a fase minoritária (Nb0.98B0.02) é supercondutora e forma uma rede tridimensional através da qual a corrente elétrica pode transitar de uma extremidade a outra do material.
É muito provável que essa característica tenha confundido os antigos pesquisadores que investigaram o NbB, levando-os a atribuir supercondutividade abaixo de aproximadamente 9 Kelvin a esse material.
“Identificamos claramente essa estrutura reticular por meio da microscopia eletrônica de varredura. Essa evidência visual foi, por assim dizer, uma prova qualitativa da propriedade. Mas não podíamos sustentar a nossa hipótese apenas neste ponto. Era preciso ir adiante, buscando também uma prova quantitativa, e foi isso que fizemos, aplicando um modelo termodinâmico aos dados tomados nos materiais estudados. Por meio dele, obtivemos então a comprovação procurada”, explicou Jardim.
Do ponto de vista macroscópico, a supercondutividade é uma propriedade exibida por certos materiais, que, abaixo de uma dada temperatura, passam a conduzir corrente elétrica sem nenhuma perda de energia, isto é, sem resistência elétrica.
“Concomitantemente a essa propriedade macroscópica existe outra propriedade, também macroscópica, que é o chamado ‘diamagnetismo perfeito’”, disse Jardim.
Essa segunda propriedade faz com que um supercondutor, na presença de um campo magnético, expulse todo o fluxo magnético do seu interior.
“O diamagnetismo pode ser então visualizado como a geração de uma corrente superficial no material que resulta em um campo magnético de mesma magnitude, mesma direção e sentido contrário ao que está sendo aplicado. É como se o material expulsasse de seu interior o campo magnético envolvente”, explicou.
O estudo teve também apoio da FAPESP por meio de bolsas nos projetos “Procura por novos materiais supercondutores” e “Supercondutividade na solução sólida (Nb1-xZrx)B”.
Ressonância e garrafas
O diamagnetismo está presente em todos os materiais. Porém, é muitas vezes tão fraco que sua manifestação fica encoberta pela presença de outras respostas magnéticas mais robustas, como o ferromagnetismo – que faz o material ser atraído pelo campo magnético externo – e o paramagnetismo – que faz os dipolos magnéticos atômicos se alinharem paralelamente ao campo magnético externo.
Quando a resposta diamagnética é suficientemente forte, como ocorre nos supercondutores, a repulsão provocada pelo campo magnético pode fazer o material levitar – um fenômeno que se tornou famoso nos tempos recentes.
As aplicações tecnológicas da supercondutividade são hoje bastante conhecidas. A principal delas consiste em construir bobinas com fios supercondutores, que, uma vez resfriados e isolados termicamente, passam a ser percorridos indefinidamente pela corrente elétrica aplicada, gerando campos magnéticos sem dissipação de energia. São esses os dispositivos utilizados em equipamentos para exames de imagem por ressonância magnética, que se tornaram corriqueiros.
“A tecnologia avançou muito nos últimos anos. Hoje, garrafas térmicas, chamadas de dewars, capazes de manter seus interiores no patamar de temperatura do hélio líquido, de 4,2 Kelvin (aproximadamente 270º C negativos), estão disponíveis comercialmente e podem acomodar bobinas supercondutoras”, disse Jardim.
Segundo o pesquisador, não há, atualmente, expectativa de aplicação tecnológica para o monoboreto de nióbio. “Mas existe um ‘primo’ dele, o diboreto de magnésio (MgB2), que passou a despertar grande interesse desde o inicio da década passada. Pode ser que nossa pesquisa venha contribuir para sua aplicação tecnológica”, disse.
O artigo Absence of superconductivity in NbB, de F. Abud, L. E. Correa, I. R. Souza Filho, A. J. S. Machado, M. S. Torikachvili e R. F. Jardim, pode ser lido por assinantes em https://journals.aps.org/prmaterials/abstract/10.1103/PhysRevMaterials.1.044803.