Da escola pública para a universidade

Da escola pública para a universidade

Em sua sétima edição, competição de conhecimentos da USP exclusiva para alunos da rede estadual de ensino tem recorde de inscritos e procura aproximar jovens da graduação

A estudante Marcela Amanda Tonelli, de 18 anos, tinha o desejo de cursar a graduação em física quando iniciou o primeiro ano do ensino médio em uma escola pública do município de São Carlos, interior paulista. Naquele mesmo ano, em 2021, por incentivo dos professores, inscreveu-se e participou da Competição de Conhecimentos e Oportunidades da Universidade de São Paulo (USP), a Cuco. A prova on-line com 18 questões, distribuídas entre ciências da natureza, ciências humanas, matemática e linguagens, foi sua primeira aproximação com um exame nos moldes do vestibular e ela pôde testar seus conhecimentos e o controle do nervosismo com duas horas cronometradas para responder a tudo.

Com o melhor desempenho de sua sala, ganhou uma bolsa de pré-iniciação científica no campus da USP na cidade, com direito a aulas semanais sobre física e desenvolvimento de um projeto de pesquisa. Em 2022, pulou uma série e foi direto para o terceiro ano. Competiu novamente e ganhou acesso a cursos remotos para se preparar para o vestibular. “Descobri que as universidades públicas têm reservas de vagas para egressos do ensino público, o que me fez sentir mais confiante”, diz ela, que foi aprovada no bacharelado em física na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e no Instituto de Física (IFSC) da USP e optou por este último, onde ingressou em 2023.

Tonelli faz parte dos 4.492 estudantes da rede estadual paulista que já participaram da Cuco e conseguiram ingressar em algum dos campi na universidade paulista ao longo dos últimos seis anos – cerca de 55% são mulheres. Em sua sétima edição, realizada em agosto, a competição gratuita exclusiva para alunos do ensino médio público bateu seu recorde: foram 141.254 inscritos – ante 18 mil da primeira edição – de 3.012 colégios distribuídos por 605 municípios.

Ao todo, 117.651 alunos efetivamente fizeram a prova e 15.888 foram premiados com certificados e cursos on-line de formação complementar para se prepararem para o vestibular, com direito a tirar dúvidas em fóruns de discussão com estudantes de graduação da USP. Algumas escolas também devem organizar visitas aos campi da universidade paulista e as 15 que tiveram maior adesão de alunos à Cuco receberão palestras sobre curiosidades da USP e um show de física com demonstrações de experimentos. “Apesar do nome do programa, o objetivo final não é promover uma disputa, mas estimular o processo formativo dos alunos, aproximá-los da universidade pública e mostrar que ela é um lugar para eles”, afirma o físico e educador Herbert Alexandre João, do IFSC-USP, coordenador-executivo da Cuco.

Uma ação de extensão universitária do programa Vem Saber, vinculado ao IFSC, a competição nasceu para ampliar o acesso de estudantes do ensino médio público ao ensino superior público. Foi criada em resposta à política de cotas para alunos de escolas públicas da USP, aprovada em 2017 para ingresso em 2018, que paulatinamente aumentou de 37% para os atuais 50% de vagas reservadas na graduação, 37,5% delas destinadas a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). “Não basta que as vagas sejam criadas, os alunos precisam saber que têm esse direito. Ninguém escolhe o que não sabe que existe”, observa o físico.

Nas edições anteriores, apenas um aluno de cada sala era premiado. Neste ano, a pedido dos próprios estudantes e dos professores, os três melhores de cada turma passaram a ser classificados com certificados de nível ouro, prata e bronze.

Um dos prêmios que os alunos recebem é o acesso a cursos complementares oferecidos pela USP, mas a iniciativa não pretende ser um cursinho pré-vestibular popular, modelo que há décadas se dedica a preparar jovens com vulnerabilidades socioeconômicas para os vestibulares. No IFSC, os membros da equipe da Cuco costumam indicar esses cursinhos para competidores da cidade de São Carlos. “Nosso trabalho é oferecer uma formação complementar”, afirma o físico Antonio Carlos Hernandes, do IFSC, idealizador da Cuco, que foi pró-reitor de Graduação da USP quando a reserva de vagas foi implementada.

Como o foco é o processo de aprendizagem, os alunos são classificados dentro de sua série e de sua escola. “Cada escola tem a sua realidade e dessa maneira os alunos concorrem com as mesmas condições educacionais”, observa Hernandes, que organizou um livro sobre a experiência da Cuco, lançado neste ano. “O intuito desse sistema é incentivar os alunos e mantê-los motivados”, complementa. Após a realização da prova, formulada com questões específicas para cada ano com base no conteúdo curricular, a comissão avaliadora define uma nota de corte calculada a partir de uma média de desempenho estadual.

Hyan Tuzi, de 20 anos, conta que se sentia desanimado com os estudos quando cursava o terceiro ano do ensino médio público no município de Penápolis, em 2021, em meio à pandemia de Covid-19. Ele cogitou fazer o vestibular, ainda sem muitas certezas, e chegou a pedir isenção da taxa da Fuvest, mas se esqueceu de anexar um documento e teve seu pedido negado. “Foi quando lembrei que a coordenadora da escola havia comentado que quem fosse premiado na Cuco daquele ano teria isenção da taxa da Fuvest. Decidi participar”, recorda-se. Ficou bem colocado, ganhou a isenção e usou os cursos on-line a que também teve acesso para se preparar em casa para o vestibular. Interessado em ciências exatas, em 2022 ingressou na USP no bacharelado em matemática aplicada e computacional. Em 2023, os alunos premiados não terão direito a essa isenção porque a parceria com a Fuvest foi interrompida.

O papel dos professores
A prova on-line da Cuco é apenas uma das etapas, segundo Hernandes. Desde o cadastro no site, passando pela inscrição, pelo teste em si e depois pelo acesso aos conteúdos criados para os alunos, tudo foi planejado para que eles conheçam os caminhos que precisarão percorrer quando se inscreverem nos processos seletivos das universidades.

Neste ano, com a implementação de uma plataforma própria – anteriormente o programa ficava hospedado no site da Fuvest –, 106 professores colaboradores distribuídos em 91 diretorias de ensino do estado terão acesso ao desempenho das classes participantes. A ideia é que eles levem essas informações para diretores e coordenadores pedagógicos, que podem avaliar quais são os conteúdos que precisam de reforço em sua instituição. “Nós somos apenas os organizadores. Tudo realmente acontece graças à mobilização dos professores e das diretorias”, afirma Hernandes. A equipe costuma visitar escolas ao longo do ano para entender suas demandas.

Patrícia Chade, coordenadora de ciências e biologia da diretoria de ensino da cidade de Araçatuba, no interior paulista, e especialista no currículo das duas disciplinas, é uma das professoras colaboradoras da iniciativa. Ela costuma incentivar a participação de docentes e estudantes em projetos que estimulem os jovens a considerarem uma carreira na universidade – entre eles, a Cuco. “Logo que o prazo das inscrições para a competição é divulgado, mando mensagens para os coordenadores e professores em grupos de WhatsApp. Monitoro as inscrições das escolas pela plataforma on-line e incentivo as que estão mais devagar”, diz ela. “Os professores relatam que, como os alunos estão prestando uma prova da USP, muitos perdem o medo do vestibular e se sentem mais encorajados.”

Também há a figura do professor incentivador – neste ano, foram 5.131 cadastrados. Pela primeira vez, 91 deles foram premiados, entre os mais votados pelos alunos, com bolsas integrais de cursos de 18 meses do MBA USP/Esalq. A professora de biologia Isabela Garcia, da Escola Estadual José Augusto Lopes Borges, de Araçatuba, foi uma das premiadas e pretende fazer o curso de gestão escolar.

Além das aulas de biologia, ela é responsável pela disciplina Projeto de Vida, em que os alunos de nível fundamental e médio direcionam seus objetivos para uma carreira. Ela usa essas aulas para estimular a discussão sobre o acesso às universidades públicas e divulgar competições de conhecimento.

Uma das alunas que receberam incentivo de Garcia foi Laura Sutil da Silva, de 17 anos, que está no terceiro ano do ensino médio, gabaritou a prova da Cuco deste ano e levou certificado de nível ouro. “Eu não acreditava muito em mim, não me achava tão capaz. Mas, depois de ver meu bom desempenho neste ano, passei a confiar mais na minha capacidade para tentar uma vaga em universidades federais e estaduais”, conta ela, que está em dúvida entre prestar vestibular para física ou zoologia.

Isabela Garcia afirma que a participação na Cuco também poderá ajudar os estudantes a se prepararem para o Vestibular Paulista Seriado, conhecido como Provão Paulista, que começará a ser aplicado já neste ano – as notas dos alunos do terceiro ano serão consideradas para ingresso em 2024. Já no ano que vem, será utilizada a nota acumulada das provas feitas na 2ª e 3ª séries do ensino médio. E em 2025 serão consideradas as avaliações nas três séries. Segundo a Secretaria Estadual de Educação, haverá cerca de 13 mil vagas distribuídas em cursos superiores nas três universidades paulistas – USP, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual Paulista (Unesp) –, na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e nas Faculdades de Tecnologia (Fatecs) do Centro Paula Souza. “A prova da Cuco é uma prévia, porque aborda conhecimentos gerais e pode servir de termômetro para que os alunos avaliem as áreas que precisam estudar mais”, observa Garcia.

Entraves quase invisíveis
Os anos de experiência com a competição permitiram aos organizadores mapear o que chamam de “entraves invisíveis” enfrentados pelos alunos antes do vestibular. Ainda em 2017, quando o projeto começou, uma das dificuldades era a falta de documentos exigidos para fazer sua inscrição, como ter um número do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). “Levamos essa informação para a Secretaria de Educação, que passou a orientar os alunos a tirar logo o CPF. Hoje já se tornou algo raro de aparecer”, relata Hernandes.

Alunos e professores também se confundem na hora de preencher o questionário socioeconômico para requisitar auxílios estudantis oferecidos pelas universidades ou a isenção da taxa do vestibular. “Muitos acham que se trata do rendimento mensal da família e não o valor per capita. Um aluno cuja família é composta por cinco pessoas com renda mensal de cerca de R$ 8 mil [menos de 1,5 salário mínimo por pessoa] tem direito a requisitar certos auxílios e muitas vezes ele não se dá conta disso”, observa Herbert.

Neste ano, apesar de a Cuco ter recebido cerca de 180 mil cadastros em seu site, processo no qual o aluno cria um nome de usuário e uma senha, cerca de 40 mil estudantes não se inscreveram para a prova, que é uma segunda etapa. “Muitos pensaram que com o cadastro já estavam inscritos. O mesmo pode ocorrer quando estiverem se inscrevendo para o vestibular da Fuvest, porque o processo é o mesmo”, explica o coordenador-executivo do projeto. “Parecem detalhes pequenos, mas podem fazer a diferença entre ingressar na universidade ou perder um ano de estudos. A cada edição levamos essas dificuldades que notamos para as diretorias de ensino”, completa.

De acordo com as professoras entrevistadas nesta reportagem, outro receio recorrente dos jovens em sala de aula é o de não ter como se manter em uma nova cidade, caso eles sejam aprovados e precisem se mudar para continuar os estudos. Por isso, um dos prêmios deste ano para os participantes será uma live sobre os programas de permanência da USP.

Por muito tempo, Geovânio Alves Monteiro, de 20 anos, aluno de uma escola estadual do município de Casa Branca, interior paulista, não cogitava fazer vestibular para uma universidade pública. Ele não conhecia a reserva de vagas nem os programas de auxílio. Na época, conciliava o trabalho em um supermercado com os estudos. “O que eu via na minha cidade eram pessoas que estudavam em faculdades privadas da região”, recorda-se. Ele fez as provas da Cuco durante o ensino médio, foi o melhor colocado de sua série no terceiro ano e também ganhou isenção para a Fuvest, o que o motivou a prestar o vestibular.

Em 2021, ele ingressou na licenciatura em ciências exatas no IFSC, mas, no final de 2022, decidiu que queria mudar de área. Prestou todo o processo seletivo novamente e em 2023 iniciou o curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Conseguiu auxílios estudantis para mudar novamente de cidade, dessa vez para São Paulo. “Já comecei a participar de grupos de pesquisa e pretendo conseguir uma bolsa de iniciação científica. Quero ser pesquisador”, vislumbra.

Livro
HERNANDES, A.C. et al. CUCo. Aproximando os estudantes de escolas públicas da universidade. São Carlos: Pró Cultural Encadernadora e Editora, 91p. 2023. ISBN: 978-65-265-0265-5.

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O Laboratório Aberto de Interatividade para Disseminação do Conhecimento Científico e Tecnológico (LAbI), vinculado à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é voltado à prática da divulgação científica pautada na interatividade; nas relações entre Ciência, Arte e Tecnologia.