Durante este período de quarentena, imposto pela disseminação do coronavírus, tenho recebido em minha casa, produtos alimentícios advindos de supermercados, quitandas e empórios. Recebo tais produtos das mãos de entregadores. Ao higienizá-los antes do consumo, refleti sobre o caminho deles até a minha casa.
Vou tomar o exemplo da laranja. Quais são os caminhos percorridos por esta fruta? Antes de chegar à minha casa, ela estava numa banca de supermercado ou quitanda. Ali fora embalada pelas mãos de um empacotador. Antes, fora transportada por um caminhoneiro empregado por firmas de distribuição, que a recolheu em algum depósito, situado na região onde resido, uma cidade do interior do estado de São Paulo, não longe de muitas plantações de laranja. Antes da chegada ao depósito, esta fruta fora trazida também por caminhoneiro, que por sua vez, recolheu-a num pomar, após ser colhida por um trabalhador ou trabalhadora rural.
Enfim, para que minha quarentena seja observada, muitas outras pessoas trabalham com suas mãos, com ou sem proteção, para garantir meu padrão de consumo alimentar. O caminho da laranja é o caminho de muitas pessoas. As mercadorias não possuem pernas, se elas se movem de um lugar a outro, em diferentes escalas, isso ocorre pelas mãos das pessoas.
Portanto, no início desta caminhada encontro homens e mulheres num pomar colhendo laranjas. São residentes nas periferias das cidades do interior paulista, sem contar que muitos deles vêm de outros estados, dentre eles, Piauí. São trabalhadores/as migrantes, também chamados/as safristas. Após o final da colheita retornam aos seus lugares de origem para, num incessante vaivém retornarem no próximo ano. São negros/as, pardos/as. São camponeses em suas terras. Migram porque não conseguem lá sobreviver, em função da falta de recursos e apoio de políticas públicas. Caminhar em busca de trabalho e da sobrevivência faz parte de suas vidas. Embora habitem nas cidades paulistas por até seis ou sete meses, jamais são vistos/as. Um nevoeiro encobre suas existências.
Como pesquisadora, realizei muitas entrevistas com mulheres e homens que labutam nos campos paulistas, ora nos canaviais, ora nos laranjais, ora nos cafezais, além de outros produtos. Descrevo em seguida, um pouco de sua caminhada desde as periferias das cidades até os pomares.
A jornada de trabalho inicia-se por volta das quatro horas da madrugada, quando preparam o café e também a comida para o almoço na roça, ou eito, como ainda é chamado. Eito é uma palavra da época da escravidão, mas ainda vige, do mesmo modo que feitor. Às seis horas, tomam o ônibus, os RURAIS. Chegando ao eito, as tarefas são distribuídas pelos empreiteiros, ou turmeiros, que são os donos dos ônibus e responsáveis por organizar as “turmas” de trabalhadores/as.
Em geral, o trabalho começa por volta das sete horas, com pausa de uma hora, às 11 horas para o almoço. Colher laranja não é uma atividade leve, como se pode pensar. Ao contrário, é um trabalho pesado, além de perigoso. Vejamos no que consiste. A altura da laranjeira pode chegar até oito metros. Portanto, a colheita precisa ser feita com o auxílio de uma escada de três metros de altura, com 15 degraus, chegando a pesar 35 kg. É de ferro, para fixar-se melhor no meio das ramas e também para dar maior estabilidade ao/a colhedor/a. A colheita é feita a partir dos galhos superiores aos inferiores. As frutas nos galhos mais baixos, chamados de saias, exige que a posição seja ajoelhada ou abaixada. À medida que as laranjas vão sendo colhidas, elas são depositadas nos “bags”, sacolas de plástico, com alças que são colocadas em torno do pescoço. É preciso lembrar que há exigência do uso dos EPIs (botas/caneleiras, sapatos especiais, boné-árabe, óculos, luvas, camisas de mangas compridas e calças). Quando a capacidade do “bag” se completa, o/a colhedor/a deposita as laranjas em caixas, cujo peso é de 27 kg. O preço pago por cada caixa é R$1,00. Há a imposição de uma quantidade mínima colhida por dia, em torno de 70 caixas, ou seja, no mínimo 1890 kg. Se esta meta (média) não for atingida, o/a trabalhador é dispensado/a. Esta forma de pagamento, por produção, é imposta pelos patrões com a finalidade de auferir maiores ganhos e causar ao empregado a imagem de que quanto maior esforço, maior será seu ganho.
É uma atividade que exige muita habilidade manual. Vale dizer ainda que a colheita se faz com as duas mãos simultaneamente, impondo a rotação dos punhos no ato de arranque da fruta, a fim de não causar danos aos galhos. Portanto, há necessidade de se equilibrar no alto da escada, com o peso da sacola ao pescoço. Ademais, há que se movimentar ao redor da planta, deslocando a escada na medida em que as frutas vão sendo colhidas, e recolher no chão ou nas ramas inferiores, na posição agachada ou ajoelhada, como foi dito acima.
O trabalho na colheita da laranja traz muitos males à saúde dos/as trabalhadores/as. Dores nos punhos, em razão dos movimentos repetitivos, desgaste na coluna, causado pelo peso da sacola, acidentes causados por possíveis quedas da escada. O contrato de trabalho é temporário. Com a reforma trabalhista, alguns direitos foram perdidos, dentre eles, o pagamento das horas in itineri, isto é, o tempo gasto até o local de trabalho, nos casos em que não há contrato ou registro em carteira. Outras perdas se reportam ao tempo de contribuição previdenciária. Em se tratando de uma atividade temporária, muitos/as não conseguem a aposentadoria, tendo em vista que a partir dos 50 anos de idade, a capacidade laboral fica extremamente restringida pelo desgaste físico ocorrido durante o tempo de trabalho.
Os caminhos da laranja me conduziram às mãos de homens e mulheres que labutam na terra, encobertos pelo nevoeiro que esconde suas vidas, suas histórias. Um sentimento profundo se apossou de mim. Como estão nestes tempos da Covid-19? Estão fora dos noticiários, dos meios de comunicação. No entanto, meu esforço foi o de entrevê-los no meio do nevoeiro, que embaça nossas visões, almas e mentes, e imaginar que outras pessoas possam saber que a laranja que consomem vem de suas mãos.
O texto foi originalmente publicado no Observatório do Trabalho István Mészáros (OTIM). A versão original está disponível AQUI.